“Não tenho de ser perfeito…para fazer milagres acontecerem.”
Noah Lyles
Encontrei esta frase do campeão do mundo dos 100 e dos 200 na série da Netflix, “Sprint:Os mais velozes do mundo” sobre os atletas masculinos e femininos destas duas disciplinas do atletismo. A série tem muitos momentos que nos deixam espreitar a vida destes atletas de elite.
Quando li a frase, fiquei mais interessado sobre esta questão da perfeição e de “fazer milagres acontecerem”.
Milagre, é algo “sobrenatural oposto às leis da Natureza”, segundo o dicionário, e tem origem no latim miraculum, coisa extraordinária, maravilha. Acredito que o Noah Lyles se referisse a coisas extraordinárias e não algo sobrenatural.
Aquilo que os atletas fazem, em muitas situações, é de facto extraordinário, fora do comum e não está ao alcance de todos.
E a perfeição, está ao alcance de alguém?
Perfecionismo
Segundo Stoeber (2018), o perfeccionismo é uma disposição multidimensional da personalidade caracterizada pela procura da perfeição e pelo estabelecimento de padrões de desempenho excessivamente elevados, acompanhados por avaliações demasiado críticas do seu comportamento.
Stoeber fala da procura da perfeição e de padrões de desempenho excessivamente elevados. A perfeição em termos téoricos é algo sem falhas, e poderemos questionar se existe algo que possamos fazer que não tenha uma única falha. Por outro lado, na definição que encontrei de perfeição, também poderemos considerar “grau de excelência, bondade ou beleza a que pode chegar algo ou alguém”(Priberam, 2024). Excelência é mais próximo daquilo que consideramos ser o desempenho de atletas.
Na definição do Stoeber, também temos aquilo que costumamos considerar a parte que poderá causar problemas num comportamento perfecionista, que são padrões excessivamente elevados e avaliações demasiado críticas do desempenho.
Excessivamente e demasiado são as palavras-chave aqui.
Alto desempenho, alta exigência
No mundo do desporto de competição existem altos níveis de exigência, faz parte, para atingir aquilo que está acima da média, o tal alto desempenho.
Não seria justo olhar para alguns comportamentos de atletas de elite da mesma forma que olhamos para um atleta de fim de semana, aquilo que pretendem alcançar implica padrões de desempenho elevados e avaliações críticas do seu desempenho.
Pensamento perfecionista
O pensamento perfecionista é um tipo de pensamento de “tudo ou nada”, generalizações excessivas e ruminação centrado em imperativos pessoais (“devia”, “deveria” e “tenho de”). Estas dificuldades incluem, muitas vezes, alterações de humor, baixa autoestima, ansiedade e depressão graves. Infelizmente, muitos perfeccionistas passam a encarar o seu perfeccionismo como um preço doloroso mas necessário para o sucesso, apesar das dificuldades que sentem.
Independentemente de quaisquer realizações objectivas, os perfeccionistas são incapazes de retirar qualquer satisfação duradoura das suas realizações, são atormentados por uma sensação de que deviam esforçar-se por “ser ainda melhores” e são assolados por uma contínua auto-inferiorização. Além disso, a sua auto depreciação contínua, e não o desejo de dominar outros objectivos mais virtuosos, é o que sustenta os esforços extraordinários dos perfeccionistas.
Os perfeccionistas consideram-se frequentemente um “fracasso bem sucedido” (Missildine, 1963, p. 76). Para Missildine, esta é a diferença entre os verdadeiros mestres de qualquer área e os seus homólogos perfeccionistas.
A literatura sobre o perfecionismo tem evoluído e poderemos considerar três grandes teorias.
Perfecionismo com 6 Dimensões
Frost et al. (1990) propuseram outro modelo influente e conceptualizaram o perfeccionismo como envolvendo seis dimensões: críticas e expectativas dos pais, padrões pessoais, preocupação com os erros, dúvidas sobre a ação e organização. Guiados por escritos sobre o desenvolvimento do perfeccionismo (por exemplo, Missildine, 1963), Frost et al. (1990) consideraram as expectativas e críticas parentais como parte integrante da compreensão da etiologia do perfeccionismo.
Perfecionismo com 3 dimensões
Hewitt e Flett (1990, 1991) publicaram um modelo que diferencia três formas de perfeccionismo: orientado para si próprio, orientado para os outros e socialmente prescrito. O perfeccionismo auto-orientado inclui crenças motivadas internamente de que lutar pela perfeição e ser perfeito são importantes. Os perfeccionistas orientados para si próprios esperam ser perfeitos. Em contraste, o perfeccionismo orientado para os outros inclui crenças internas de que é importante que os outros se esforcem por atingir a perfeição e sejam perfeitos. Os perfeccionistas orientados para os outros esperam que os outros sejam perfeitos.
O perfeccionismo de desempenho orientado para si próprio (por exemplo, “exerço pressão sobre mim próprio para ter um desempenho perfeito”), perfeccionismo de desempenho socialmente prescrito (por exemplo, “as pessoas esperam sempre que o meu desempenho seja perfeito”) e perfeccionismo de desempenho orientado para os outros (por exemplo, “critico as pessoas se não tiverem um desempenho perfeito”).
2 Grandes Dimensões
Para Stoeber (2018) existem duas grandes dimensões, a primeira dimensão de ordem superior manifesta-se através de combinações de padrões pessoais, perfeccionismo orientado para si próprio e procura da perfeição.
A segunda dimensão de ordem superior manifesta-se manifesta-se por combinações de preocupação com os erros, dúvidas sobre as acções e reacções negativas à imperfeição.
No fundo para Stoeber existem esforços perfeccionistas e preocupações perfeccionistas.
Esforços perfecionistas são os comportamentos que são entendidos pelo sujeito como responsáveis pelo seu alto desempenho e o seu desejo de perfeição.
As preocupações perfecionistas são todos os comportamentos que servem para o sujeito se proteger de possíveis críticas e reparos dos outros relativamente ao seu desempenho.
A ambição de ganhar vs o medo de perder, poderá ser uma boa analogia para explicar isto que acabámos de falar.
“O perfeccionismo, na sua essência, está enraizado no mundo relacional do indivíduo.”
Hewitt, P. L., Flett, G. L., & Mikail, S. F. (2017)
2 Paradoxos
Em primeiro lugar, porque é que o perfeccionismo persiste, tendo em conta os seus custos? Um indivíduo que exige a perfeição para si próprio e falha (o único resultado possível, tanto quanto sabemos) experimenta uma intensa culpabilização, autocrítica e emoções aversivas, incluindo vergonha, culpa e afeto depressivo – todas formas diferentes de dizer “autopunição”.
O paradoxo é ilustrado na desconexão social do perfeccionismo, em que os indivíduos desenvolvem e adoptam um comportamento perfeccionista com o objetivo final de melhorar a sua ligação com os outros. No entanto, o comportamento perfeccionista produz uma falta de proximidade, intimidade e ligação com os outros, e resulta em alienação e crença na sua imperfeição e separação dos outros. Este é um excelente exemplo do paradoxo neurótico, em que o indivíduo perfeccionista cria, de facto, a situação que mais teme e que foi absolutamente levado a evitar.
As pessoas que podem estar especialmente em risco são os perfeccionistas que tiveram efetivamente algumas realizações significativas. Estas pessoas estão em perigo em dois aspectos fundamentais.
Primeiro, o que se segue para os perfeccionistas que alcançaram um desempenho, feito ou realização excecional?
O que é que eles fazem para um encore?
Estas pessoas não conseguem ter tempo para apreciar as suas realizações, porque rapidamente se preocupam com a sensação de que agora o nível de expetativa é ainda mais elevado e a pressão é ainda maior para manter esse nível (Hewitt, Flett, & Mikail, 2017).
O desporto de formação
“Agora todos esperam que eu tenha sempre um desempenho a este nível.”
Esta poderia ser uma frase que passa pela cabeça de muitos jovens atletas.
Sabendo que o perfecionismo está associado às relações dos sujeitos, como podemos nós ajudar os jovens atletas?
Reforçar o esforço mais do que o resultado, valorizar mais a ligação do que a performance.
Fundamental comunicar com clareza que o jovem é mais do que os seus resultados, que aquilo que se espera, e até se exige, é dedicação, empenho, compromisso, respeito, e não “padrões excessivamente elevados de desempenho que resultam em avaliações demasiado críticas do seu comportamento”.
Noah Lyles consegue fazer milagres sem ser perfeito.
Será que não seremos todos ainda mais capazes de fazer, e ajudar a fazer milagres se largarmos a ideia de perfeição?
Photo da Netflix.