É muito importante ser optimista, é mesmo fundamental se queremos ter uma vida da qual nos orgulhamos, pois esse optimismo vai-nos permitir estar mais tempo na tarefa porque existe uma esperança que ajuda a suportar as dificuldades.
No entanto existe um enviesamento, um atalho cognitivo que é importante ter em conta.
Quando só vemos os casos de sucesso e baseamos o nosso percurso nesses, estamos a correr riscos.
Enviesamento da sobrevivência
O que é
O enviesamento da sobrevivência é uma falácia cognitiva em que, ao olhar para um determinado grupo, se concentra apenas em exemplos de indivíduos bem-sucedidos (os “sobreviventes”) no processo de seleção e não no grupo como um todo (incluindo os “não sobreviventes”).
No caso do desporto pode significar basearmo-nos apenas nos jogadores que chegam aos clubes de topo, e não ver todos os outros casos de jovens jogadores que nunca conseguiram ser profissionais.
Em maio de 2019, os companheiros de equipa do Manchester United Marcus Rashford e Jesse Lingard publicaram a mesma mensagem enigmática no Instagram.
A mensagem dizia simplesmente “0,012%” e referia-se ao facto de que apenas 180 dos 1,5 milhões de rapazes que jogam futebol juvenil organizado em Inglaterra chegam a jogar um minuto na Premier League.
É uma percentagem baixa, muito baixa até, se tivermos em conta todo o investimento que os jovens, os seus pais, treinadores e familiares, colocam numa possível carreira nos palcos mais altos do futebol.
Não tenho conhecimento das estatísticas em Portugal, mas acredito que não sejam muito diferentes.
Porque é que acontece
O enviesamento da sobrevivência ocorre em muitas disciplinas, profissões e domínios, não é exclusivo do desporto.
Também no mundo das start-ups existe este enviesamento, onde os jovens empreendedores se focam nos “unicórnios”, as empresas de sucesso em que o seu fundador deixou os estudos e seguiu o seu sonho.
O preconceito de sobrevivência pode ser atribuído a um mal-entendido fundamental de causa e efeito e a uma perceção distorcida de correlação versus causalidade.
Correlação versus Causalidade
Correlação significa que existe uma associação estatística entre variáveis. Quando uma altera a outra também altera, mas não significa que a alteração de uma seja a causa da alteração da outra. A correlação pode até ser negativa, mais de uma significar menor de outra.
Por exemplo, treinar todos os dias tem uma correlação com o nível de competência que poderei ter, mas dizer que é apenas o treino que faz aumentar a competência não é correcto. A nutrição, o descanso, o treino psicológico, são tudo coisas que podem ter influência, e uma vez que não conseguimos isolar variáveis, não podemos afirmar que mais treino é igual a maior competência.
Seria o mesmo que dizer que criar o Facebook foi causado por o Mark Zuckerberg não tirar um curso superior. Sabemos que não é tão simples.
O Cristiano Ronaldo fez a sua formação no Sporting Clube de Portugal, mas não podemos afirmar que ser jogador de formação do Sporting é a causa de ele ter sido o melhor jogador do mundo, nem que todos os jogadores que passem pela formação do clube venham a ser jogadores profissionais.
Causalidade significa que uma alteração numa variável causa uma alteração noutra variável. Quando alguém bebe uma cerveja, isso torna-se a causa do aumento de álcool no sangue. Quando falhamos um golo no último minuto podemos acreditar que a causa da derrota foi esse momento, no entanto tivemos talvez centenas de oportunidade para marcar ao longo do jogo.
O caminho feito pelos outros não é garantia de nada.
Sempre que olhamos para o caminho de alguém e procuramos imitar tudo como forma de garantir um sucesso semelhante, estamos a esquecer de que as variáveis nunca são exactamente as mesmas.
Quando baseamos todas as nossas decisões no sucesso do jogador que foi para o Sport Lisboa e Benfica aos 10 anos, esquecemo-nos de muitos jogadores que também lá estiveram com 10 anos e não chegaram sequer a juniores do clube.
O enviesamento da sobrevivência incentiva um pensamento demasiado optimista, só vemos o que corre bem, ou também entendemos que temos de passar pelo mesmo desconforto que aqueles que queremos imitar.
Ter dificuldades financeiras e ser madeirense não são requisitos para ser jogador de topo, o Bernardo Silva era um “betinho de Lisboa” e está onde está.
Como evitar
– Questionar o que não vemos
Quando olhamos para os jogadores que chegam ao mais alto nível convém também perguntar o que poderá ter acontecido a todos os outros que não chegaram ao topo.
Não quero que fiquem com a ideia de que não é bom ter exemplos e fontes de inspiração, importa sim é ter uma visão alargada do que pode acontecer e dessa forma preparamo-nos para todos os cenários.
– Abraçar diferentes caminhos para o sucesso
Mais do que fazer tudo o que o nosso ídolo faz, ou fez, para atingir o patamar que queremos, devemos ter consciência de quem somos, onde estamos, e quais os recursos que temos para lá chegar. Acreditar, sempre, mas ter a consciência que existem muitas formas de ir do ponto A ao ponto B.
– Foco no desenvolvimento holístico
Dar prioridade ao desenvolvimento global dos jovens atletas, incluindo o seu bem-estar físico, emocional e social. Se o foco for desenvolver os jovens atletas como pessoas completas, mesmo que o seu sonho de chegar à elite do seu desporto não se chegue a concretizar, não ficam sem nada, são pessoas capazes de colocar todas as competências ao serviço de outros projectos que queiram abraçar.